Muito me orgulha falar do ser humano como uma só raça. E me orgulha mais ainda pensar que somos todos irmãos.
Essa semana, no dia das crianças, fui à um abrigo de menores abandonados passar uma tarde com eles, levar doações e fazer brincadeiras. O choque é muito grande, te faz tremer por dentro e você tira forças não sei de onde para não chorar ali na frente daqueles pequenos que vêem em você a chance de umas horas de felicidade. Eu sei que isso é óbvio, mas preciso falar que é destruidor você ver tamanho descaso com esses meninos, e como esses lugares parecem ser muito mais sujos de hipocrisia do que a antiga casa deles, a rua.
A vida de cada um deles me impressionou muito, e não poderia ser diferente. Todos parecem já ter sofrido em dez anos muito mais do que sofreram meus pais, em cinquenta. E eles não precisam nem abrir a boca pra gente perceber isso. Crianças com o rosto revestido por uma expressão constante de ódio e revolta, e de um ou outro sorriso que, insistentemente, cisma em aparecer quando eles captam uma bola ou uma corda, uma boneca ou um simples carrinho… Um olho que parece enxergar dentro de você, e te faz sentir vergonha por tudo que você classifica como um “sério problema” na sua vida. Um olho que te faz sentir mais vergonha ainda de ter tido tempo para tanta coisa pequena e ter esperado vinte e dois anos pra ir lá e olhar dentro dele.
Um dos casos era de um menino, recém chegado na casa, que tinha marcas de queimado pelo corpo, causados pela própria mãe, que usava cigarros e colher quente para castigar o garoto. Ele está lá por medida de proteção, e claramente não entende nada do que acontece com ele e seus cinco aninhos de vida. Não entende porquê aquela casa passou a ser sua protetora, papel que deveria ser de sua mãe. Ele mal fala e não interage muito… Afinal, quando a barriga da qual você saiu te queima com ponta de cigarros, imagine que mal pode lhe fazer um desconhecido?
A mesma raça que me dá orgulho, me dá vergonha e pena. Essa raça, que é o único animal racional, perde a razão dia após dia. E a criança, que de nada tem culpa, é quem fica com as marcas. E, como encontrar o culpado, numa história onde só temos vítimas? Essa mãe, queiramos admitir ou não, nada mais é do que uma vítima. Mas, quem eu achei que fosse o culpado, diz agora que essa criança está sob sua “proteção”.
O caso é que trata-se de uma casa onde todos sabem o caminho para fugir dali, dos mais novinhos até os mais velhos. Quando chegamos, fomos informados de que tinham ali dezenove crianças, porque duas haviam fugido recentemente. E, quando perguntei o que acontecia com os que fugiam, escutei que “é assim mesmo, eles fogem, dali a pouco se metem em encrenca e acabam voltando”. Muito triste escutar um “é assim mesmo” conformista da diretora da instituição, que deveria ter sua indignação renovada a cada dia, e transformada em alguma ação. Eu até entendo o cansaço, mas não o conformismo.
Somos todos irmãos, mas destruímos até mesmo a nossa maior herança, que é a Terra. Fico triste de ver como se chama o outro de “irmão” por pura gíria, sem nem pensar na verdade que esse chamar carrega. A nossa felicidade depende diretamente da felicidade do nosso irmão mas, curiosamente, ao invés de facilitar, nós atrapalhamos a vida de quem quer que seja, só para melhorar a nossa, sem enxergar que o bem ao próximo nada mais é do que nosso próximo bem.
Não quero perder minha indignação diante dessa e outras injustiças, pelo contrário, quero que ela se multiplique a cada dia e que atinja vocês e a nós todos, e espero viver suficiente para ver um mundo, ou pelo menos uma cidade em que a indignação move muito mais as pessoas do que o entretenimento para seu bel prazer.
Esse menino não pôde contar com seus pais, e não pode contar com o país. Mas, se ele puder contar com ao menos uma pessoa que seja, que o visite ao menos uma vez ao mês e lhe explique que nas marcas que estão em seu corpinho é depositada a esperança e a confiança de mudança, e que o bem existe e está ao lado dele, não vai ter colher quente que o faça parar de lutar para que mais nenhuma criança passe pelo que ele passou.
Acredite, o poder que essa mãe teve de traumatizar essa criança é infinitamente menor do que o poder que você tem de transformar esse trauma em renovação, com um simples mas sincero abraço.
É, Deia. O Brasil está assim.
ResponderExcluirCrianças sem perspectiva devido às suas realidades familiares. O que podemos fazer? O indignamento não pode ser o principal sentimento, é necessário a ação.
Mas, como mudar o comportamento de um país?
Estupro, agressão, drogas.. Esse vocabulário me dá raiva. Eu tento fazer a minha parte, todos os dias ao participar das oficinas de teatro da escola de minha comunidade passando um pouco do pouco que sei.
Karen, o bicho tá pegando mesmo né?
ResponderExcluirMas de fato, ficar triste com isso só pode nos servir de impulso pra agir. Ação é a palavra.
Pensar global e agir local. Fazer o que está ao seu alcance.